18 de janeiro de 2015

Soldados: Sobre lutar, matar e morrer de Sönke Neitzel e Harald Welzer

Cerca de um milhão de soldados alemães foram capturados pelas tropas britânicas e norte-americanas ao longo da Segunda Guerra Mundial – desde jovens praças de infantaria até oficiais condecorados da Luftwaffe e da SS. As divisões de espionagem dos Aliados, interessadas no potencial estratégico das conversas e confidências trocadas entre alguns desses prisioneiros, instalaram microfones ocultos em suas celas a fim de monitorar diálogos relevantes para a inteligência militar. Pistas decisivas sobre flutuações do moral do inimigo e o desenvolvimento de armas secretas pelo regime nazista apareceram nas dezenas de milhares de páginas transcritas dessas escutas.

Setenta anos após o conflito, esses inestimáveis documentos históricos – nunca antes publicados – são a base deste livro assombroso e surpreendente. Os autores oferecem uma radiografia extensa dos modos de ser, pensar e combater dos soldados de Hitler, mas também um olhar único e indispensável sobre a mentalidade dos militares em geral, que sempre insistiram em seu comportamento honrado durante as guerras. Esse mito é derrubado de uma vez por todas por essas gravações.

 

Livraria Cultura / Saraiva / Amazon

 

Esse livro, apesar de trazer um documento histórico incrível e imprescindível, pode também ser muito atual e revelar muito de nossa sociedade hoje, em pleno século XXI, mostrando que ou a história é mesmo cíclica ou a humanidade em geral não evoluiu em nada!

Para começar podemos ver que a espionagem é algo que vem de muito tempo atrás, então WikiLeaks e Snowden só vieram mesmo para revelar algo que existia – e ainda deve existir, pois duvido que os governos vão deixar uma arma dessas para trás! Mas o mais interessante nesse livro é o estudo sociológico e histórico que os autores fazem no início e que me fez refletir sobre muitas coisas e acontecimentos e me fez enxergar o mundo de uma outra forma.

Sönke é historiador e Harald, sociólogo e os dois se uniram para analisar o tesouro que são as gravações feitas, pelos Aliados, de conversas de soldados alemães presos durante a guerra. Esses relatos são como uma cápsula do tempo, pois como foram gravadas no decorrer da guerra, os soldados não sabiam quem sairia vencedor, nem quanto tempo a guerra duraria. O que eles tinham em mãos era o dia a dia desses indivíduos e o modo como eles interpretavam o que estava ocorrendo no mundo o o modo como se gabavam e/ou contavam suas experiências no decorrer das batalhas e ocupações.  São relatos crus, violentos e surpreendentes!

Uma das coisas que mais me chamou a atenção no livro foi aprender sobre "marcos referenciais". O que é isso? Vou transcrever a explicação dos autores:

"Os seres humanos não são como os cães de Pavlov. Eles não reagem a determinados estímulos com reflexos condicionados. Nos seres humanos, entre estímulo e reação acontece algo bastante específico, que representa a sua consciência e difere a espécie humana dos demais seres vivos: os seres humanos interpretam o que seus sentidos percebem e, só a partir dessa interpretação, tiram conclusões, decidem e agem. Por isso, ao contrário do que supunha a teoria marxista, os seres humanos jamais atuam com base em condições objetivas – nem se orientam exclusivamente pelos cálculos de custos e benefícios, como teóricos da rational choice nas ciências sociais e econômicas fizeram acreditar por muito tempo. Uma guerra não se explica inteiramente com ponderações de custo e benefício; ela tampouco surge necessariamente das circunstâncias objetivas. Um corpo sempre cai de acordo com as leis da gravidade, e nunca de outra maneira, mas o que as pessoas fazem pode ser sempre feito de outro jeito. Nem mesmo temas tão mágicos como as "mentalidades"  conseguem estabelecer o que os seres humanos fazem. Não que se duvide da importância das configurações psicológicas. As mentalidades antecedem as decisões, mas não as determinam. Embora a percepção e a ação dos seres humanos estejam ligadas a condições sociais, culturais, hierárquicas, biológicas e antropológicas, eles gozam de uma margem de interpretação  e de ação. Poder interpretar e tomar decisões pressupõe alguma orientação – e saber em que está envolvido e quais consequências cada decisão traz. Essa orientação fornece uma matriz ordenada de modelos interpretativos: o marco referencial.

Histórica e culturalmente, os marcos referenciais variam bastante: muçulmanos ortodoxos enquadram o comportamento sexual como moral ou reprovável em marcos distintos aos dos ocidentais secularizados. Nenhum membro  de nenhum dos grupos compreende o que vê livremente de referências que, não tendo procurado nem escolhido, ainda assim marcam, induzem e direcionam de maneira significativa seus sentidos e interpretações. Não quer dizer que não haja também, em situações especiais, extrapolações do marco referencial estabelecido e algo verdadeiramente novo seja visto ou pensado. Mas isso só ocorre raramente. Marcos referenciais garantem economia de ação: o que ocorre com mais frequência pode ser enquadrado em alguma matriz conhecida. Funciona como um alívio. Nenhum agente precisa começar sempre do zero, respondendo continuamente à mesma pergunta: o que está realmente acontecendo agora? As respostas a essa pergunta já estão, em sua grande maioria, pré-programadas e são reproduzíveis – armazenadas num acervo cultural de orientação e conhecimento que dissolve em rotinas, costumes e certezas boa parte dos encargos da vida e poupa os indivíduos de forma colossal."

Como se pode ver, se partirmos dessa definição de marcos referenciais, podemos compreender o mundo de um outro jeito, pois a cultura e sociedade é muito variável em todo o mundo. E uma das coisas que me chamou a atenção também foi quando os autores afirmaram que Hitler conseguiu mudar o marco referencial alemão em pouco mais de uma década, sendo que os marcos referenciais mudam somente durante gerações.

A parte alta do livro, porém, são as transcrições das conversas entre os soldados. Há todo um universo lá que a gente nem consegue imaginar! O horror, as mortes, o modo como lidavam com os fatos da guerra e da paz... tudo é um aprendizado tremendo e uma entrada numa mentalidade totalmente diversa da nossa! Tinha horas que eu tinha de parar, pois ficava escandalizada como o pouco caso que eles faziam das vidas humanas. Mas como os autores já explicam no começo: devemos ler sem julgamentos, pois o marco referencial deles é diferente do nosso, e eles não sabiam o que viria pela frente! (se bem que não sei se fariam diferente se soubessem...). O livro traz uma histórica reconstituição do Terceiro Reich e um estudo muito profundo da mentalidade dos soldados e pessoas que viveram nesse período e foram seduzidos pela aura de Hitler e seus asseclas.

Mas quando disse que esse livro ainda pode ser traduzido para nossa era atual – século XXI – é porque é difícil não enxergar a ideologia que os nazistas seguiam tão ferrenhamente da ideologia dos jihadistas de hoje: há o mesmo ódio a quem não é como eles (arianos = islamitas), a mesma sanha de dominar o mundo (veja as guerras na África e em alguns países do Oriente onde cristãos e outras etnias estão sendo perseguidos por radicais islâmicos). Há toda uma cultura de ódio e perseguição ao diferente e um descaso total com a vida de inocentes! E acho que essa teoria dos autores sobre marcos referenciais pode ajudar a entender e compreender o mundo de hoje de uma forma mais clara e sem ideologias. Um livro para ser referência para sempre!

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